Instalação
(Fundação Iberê Camargo, 2008)
Chama a atenção, no trabalho que Iole de Freitas vem realizando desde o início de sua carreira, por volta de 1973, a lida intensa que a artista sempre entreteve com os materiais. De fato, o conjunto do trabalho fundou o essencial de sua linguagem no confronto com um universo de materiais. Tecidos que se fendiam como uma membrana para dar passagem ao corpo, fios de arame com que se “costuravam” superfícies descontínuas, tubos finos de plástico transparente e borracha que se penduravam ou retorciam, em todo caso deixados à mercê do próprio peso, telas de fios metálicos e placas de cobre e latão, das mais dúcteis às mais rijas e ineptas ao manuseio, que se comprimiam numa sucessão dramática de volumes, cabos, tensores e, a partir de 2000, os tubos robustos de metal e as lâminas de policarbonato que marcariam os trabalhos de grande escala da artista – aí estão algumas das passagens mais marcantes dessa lida.
Visto que a relação com os materiais implicava uma linguagem de gestos e procedimentos, uma economia, enfim, de energias corporais, é, naturalmente, uma linguagem do corpo o que está em jogo para esse trabalho – não um vocabulário de materiais, com seu corolário de metáforas e simbolismos. Por isso o gesto, em Iole de Freitas, jamais será predicativo, isto é, jamais se separa de seu objeto mas constitui, ele próprio, o sujeito e o objeto da experiência do trabalho. Os materiais, por sua vez, não se apresentam aí como factualidades: são a expressão concreta desse gesto.
Também é preciso dizer que raras vezes os materiais tiveram, na produção de Iole de Freitas, um estatuto escultórico, pois a artista tendeu a manter intacta a evidência muda de suas propriedades físicas, com o que esses materiais nunca deixaram de se revelar como os elementos descontínuos que eles eram já em sua origem. Chapas, tubos, cabos compareciam, afinal, como fragmentos de uma ordem universal dos objetos, que se arrebatavam para o trabalho na franqueza de suas estruturas planas ou lineares, dessubstancializados, pouco propícios à obtenção da massa e do volume, e, devido à sua rigidez ou lassidão excessivas, quase destituídos de plasticidade. Assim, não era de se estranhar que uma artista preocupada essencialmente com uma fenomenologia do espaço, ao lidar com uma variedade de materiais frequentemente os traduzisse em quase nada, em feixes de linhas e planos – o que ocorreu sobretudo na produção da última década.
Não porque ela os dissolvesse numa abstração, mas porque, tendo-os projetado à condição de linhas e planos – eixos de força – pôde firmar através deles uma escala arquitetônica para o trabalho, e este assim chegou a alcançar grande amplitude de espaço apenas por meio de superfícies ou muros, limites que o trabalho convidava a transpor, ou, ainda, balizas e mapeamentos graças aos quais ele podia lançar o corpo em situações virtuais, nas quais este se veria como que projetado num espaço aéreo, atmosférico, isento da massa, do peso e da axialidade a que nos destina nossa posição ereta. Vê-se logo, portanto, que trabalhar os materiais como feixes de linhas e planos não indica uma vontade de síntese, ou a redução desses materiais a categorias abstratas; bem ao contrário, tratou-se sempre, para a artista, de discriminar pelo gesto uma verdadeira práxis dos materiais em meio à variedade de seus aspectos empíricos, de conseguir instaurar uma dimensão prática da linguagem na qual o gesto encontraria a condição necessária e suficiente de seu aparecimento.
O espaço, dessa maneira, não antecede o gesto; ao invés, funda sua própria condição de possibilidade, e assim “inventa” o espaço. Nas espécies de arranjos atmosféricos em que resultaram muitas das instalações da artista, surgidas da articulação, em ângulos dramáticos, de uns poucos segmentos de chapas translúcidas de policarbonato, o gesto organiza a luz e lida com ela como elemento de sintaxe do trabalho; desse modo, paradoxalmente, a luz intervém como o seu material mais denso, e Iole de Freitas nela encontra um recurso extraordinário de articulação de partes, de expansão ou contração dos limites do trabalho.
Sônia Salztein